O “foie gras” é tema de um conflito entre tradição e bem-estar animal. Enquanto alguns o consideram um patrimônio cultural e gastronômico, outros o veem como um símbolo de sofrimento desnecessário e prática obsoleta.
“Foie gras”, que, em francês, significa literalmente "fígado gordo", é uma iguaria da alta gastronomia francesa. De cor pálida, levemente rosada ou bege, textura extremamente macia, quase amanteigada, sabor rico, delicado, com notas de nozes e umami, é usualmente servido como entrada em terrines, patês, torradas, ou como acompanhamento de pratos quentes, com carnes, frutas ou doces.
Tradicionalmente, são usados principalmente patos da raça Mulard, e gansos da raça Landes, que passam por processo de engorda forçada, ou “gavage”, que consiste na introdução de um tubo diretamente no esôfago do animal, por onde se despejam grandes quantidades de milho cozido goela abaixo, com o objetivo de provocar uma esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) fazendo com que o órgão fique até 10 vezes maior que o normal. A prática surgiu no Antigo Egito, cerca de 2500 a.C., foi difundida pelos romanos e, posteriormente, consolidada como tradição na França, hoje o maior produtor e consumidor mundial de “foie gras” onde é considerado símbolo da gastronomia nacional, uma tradição culinária com séculos de história.
Após alcançado o desenvolvimento desejado, as aves são abatidas, o fígado retirado, podendo ser consumido in natura (cru), em preparações sofisticadas, cozido (foie gras en terrine ou en torchon), ou ainda enlatado ou pasteurizado.
Após o abate, além do “foie gras”, outras partes do animal são consumidas, como o Magret de canard (peito de pato), muito valorizado na culinária, o confit de canard (coxas) e na produção de caldos e conservas (carcaça e gordura). As carnes de pato e ganso são tradicionalmente apreciadas na gastronomia por sua textura macia, sabor marcante, alto teor de gordura, e suculência. As carnes de patos e gansos utilizadas na produção de “foie gras” são consideradas boas e seguras para o consumo humano, embora haja preocupação relacionada ao uso de antibióticos ou outros medicamentos na criação intensiva.
Em algumas regiões, como no Reino Unido, Alemanha, Itália, Noruega, Dinamarca, Índia, a produção e comercialização de “foie gras” são proibidas, enquanto em outras, são permitidas. No Brasil, há projetos de lei que buscam proibir a sua produção e comercialização. Nos Estados Unidos, alguns estados e cidades, como Califórnia e Nova York, tentaram proibir a venda de foie gras, mas enfrentaram processos judiciais movidos por produtores e chefs, alegando que tais leis violam direitos econômicos e culturais. Em muitos outros países, embora a produção seja proibida, a importação e venda ainda são permitidas, alimentando o comércio.
Vimos percebendo um crescente interesse por carnes de criação mais ética e sustentável, inclusive alternativas ao “foie gras”. Muitos consumidores preferem carne proveniente de produção artesanal ou de fazendas certificadas. Na maioria dos casos, a proibição é específica à prática de gavage, e não ao “foie gras” em si, o que abre espaço legal para produções de “foie gras” sem alimentação forçada, o chamado "foie gras ético" ou "natural", por exemplo, que utiliza alimentação natural e voluntária dos gansos,
É preciso lembrar, também, que há pesquisas e desenvolvimentos de alternativas vegetais ao “foie gras”, produzidas com grãos e legumes, métodos de produção sem gavage, usando o comportamento natural dos gansos, ou produtos de "foie gras cultivado" em laboratório, que visam replicar o sabor e textura sem o uso de animais.
O "foie gras ético" ou "natural" baseia-se na alimentação natural e voluntária dos animais. Gansos, por exemplo, têm um comportamento instintivo de superalimentação antes da migração, acumulando gordura no fígado. Criadores éticos exploram esse comportamento, permitindo que os animais comam espontaneamente alimentos calóricos, sem a necessidade de forçá-los. Um exemplo conhecido, o do produtor espanhol Eduardo Sousa, premiado internacionalmente por ter criado um modelo reconhecido mundialmente, em que gansos são criados em liberdade, alimentando-se naturalmente de figos, azeitonas e grãos, mostrando que é possível produzir um produto de alta qualidade sem crueldade. Entretanto, sua produção resulta muito menor e mais cara do que pelo método tradicional.
O “faux gras" – uma alternativa vegetal imprimindo zero sofrimento animal, produtos 100% vegetais, que simulam o sabor, a textura e a aparência do “foie gras”, geralmente produzidos com oleaginosas (como castanhas ou tofu), azeites aromáticos, especiarias e ingredientes que conferem cremosidade e umami.
O “foie gras” cultivado (carne de laboratório) - consiste em cultivar células hepáticas de pato ou ganso em biorreatores, sem a necessidade de criar, alimentar ou abater o animal.As células são estimuladas a se desenvolver de maneira semelhante ao fígado hipertrofiado usado para “foie gras”.
É possível promover um foie gras mais ético, mas isso exige iniciativa legislativa, mudanças na produção e educação do consumidor. O futuro do “foie gras” está cada vez mais ligado a práticas sustentáveis e inovações alimentares, alinhadas com as demandas por bem-estar animal.
Políticas públicas e investimentos em pesquisa agroalimentar podem e devem estimular o desenvolvimento de métodos de produção mais éticos, incluindo “foie gras” cultivado em laboratório ou alternativas vegetais gourmet.
Em resumo, é possível promover um “foie gras” mais ético dentro das restrições legais já existentes, desde que a produção não envolva alimentação forçada, se invista em educação do consumidor e inovação tecnológica, e que haja transparência e certificação, sempre tendo em vista o respeito à legislação, em atenção a uma demanda crescente por alimentos éticos e sustentáveis.